A reforma trabalhista e a desumanização: o caso Estácio

No livro Androides sonham com ovelhas elétricas?, de Philip P. Dick,1 que deu origem ao clássico filme Blade Runner, os robôs humanoides eram distinguidos dos seres humanos pela ausência de empatia, que era constatada por meio de um teste no qual eram apresentadas aos androides situações que causariam emoções como horror, nojo, medo, e repulsa. Em determinado momento do livro, os androides que se achavam humanos começam a se questionar se são realmente o que pensavam ser (da raça humana) ou se eram robôs. Os personagens começam a desconfiar de sua natureza a partir de constatarem em si mesmos falta de empatia – ou da sua existência somente de forma parcial. Será que somos androides?, eu começo a me questionar nestes últimos tempos.

A chamada “reforma trabalhista” é tida como modernizadora pelos seus defensores, em seu discurso de valorização da negociação coletiva e, pela maior flexibilidade da lei, o potencial de gerar mais empregos. Seus ardorosos amantes a chamam até de revolucionária.

Os recentes eventos, por outro lado, demonstram melhor sua natureza do que a visão de ideólogos apaixonados. Logo a partir da vigência das novas normas, passamos a nos deparar com Juízes implacavelmente condenando trabalhadores em quantias impagáveis e a explosão de dispensa em massa de empregados. Hospitais que dispensam centenas de trabalhadores para transformá-los em “empresas de si mesmos” e universidades que dispensam milhares de trabalhadores sem dizer a razão se tornaram lugar comum.

O caso da dispensa em massa realizada pela Universidade Estácio de Sá é um trailer perfeito do que está por vir na sociedade brasileira.

Vamos aos fatos: por nota de colunista de jornal a empresa comunicou a dispensa de cerca de 1200 professores universitários, “a fim de aproveitar a reforma trabalhista” , pois os mestres estariam custando muito caro. Antes do término do semestre, no dia de aplicação de prova, os professores foram violentamente impedidos de aplicarem as avaliações: uns foram literalmente retirados de sala aula, outros lhe foram negados o material para a realização dos exames aos alunos, servindo de senha para a comunicação da dispensa. À boca miúda a “deixa” logo se espalhou: “se o seu material não estiver na bancada, é que você foi demitido”. Os gestores (assim se chamam uma figura assemelhada a diretores de faculdade no mundo universitário modernizado), alguns assustados e sem entender bem o que ocorria, informaram aos professores que estavam dispensados e que não tinha nada a ver com desempenho pessoal, mas sim com “ordens de cima”, de natureza econômica. De fato, quase todos os professores dispensados receberam o chamado “prêmio meritocracia”, instituído pela própria universidade, e ganharam parcelas em dinheiro ou em cartões para gastos em lojas. Alguns eram responsáveis por importantes pesquisas, outros pela criação dos próprios cursos dos quais estavam sendo dispensados. Todos com qualificação, boa parte com mestrado (às vezes mais de um) e doutorado. 2

Mas um ponto em comum na atitude empresarial sobressaltou-se: a idade dos professores dispensados. Conforme amostra dos trabalhadores dispensados, de 104 professores verificou-se que 81 deles têm mais de 50 anos. Outros 18 docentes têm de 40 a 49 anos e somente 5 entre 30 e 40 anos. Um professor de 81 anos foi dispensado, e alguns acima de 70 anos. É de se perguntar se algum professor idoso ficou na Universidade Estácio de Sá. Talvez seja importante ser questionado se sobrou qualquer professor que tenha 50 anos de idade que seja. A discriminação por idade ressalta aos olhos pelos dados. Afinal, qual a razão do corte dos professores mais experientes?

Essa é a faceta mais dura e evidente da reforma: a desumanização. Os seres humanos professores universitários, suas pesquisas, sua experiência, sua carreira, sua história na Universidade, suas relações com os alunos e demais professores, suas orientações ao corpo discente, as suas famílias, tudo isso foi preterido em favor de números: 1200 dispensados, 77% acima de 50 anos de idade, 95% acima de 40 anos de idade e alguns trocados a mais no bolso dos investidores. A violência das dispensas e esses números assustadores demonstram que o ser humano pouco ou nada importa. A Educação, também, parece miseravelmente importar, vale dizer.

Ficam algumas perguntas: o que é uma universidade – ou uma empresa? Ela é somente capital investido ou ela é composta também pelas pessoas engajadas – professores, pessoal administrativo e alunos – e relações que essas fazem dentro do espaço institucional?

Transpondo para a reforma: se esta tem como objetivo, basicamente, a redução de custos, como afirmou a notícia original da dispensa dos professores pela Universidade Estácio de Sá, temos que lembrar que diminuir o custo do trabalho é, obrigatória, inevitável e logicamente reduzir o valor da pessoa que trabalha. Ao reduzir o valor da pessoa que trabalha – o outro, sujeito de nossa potencial empatia – como consequência estamos a reduzir o valor de todo e qualquer ser humano, pois muita inocência seria acreditar que na concatenação ou cadeia de desvalorização do ser humano, em determinado momento ela não chegará a nós, demais seres humanos. Se uma empresa dispensa trabalhadores em idade avançada, mantendo os mais jovens – e, bem provável, contratando outros com mais juventude ainda -, todos que conseguirem avançar em tempo de vida estarão sujeitos à mesma crueldade. Todos nós, na melhor das hipóteses, envelhecemos e passamos por todas as fases possíveis da vida. Assim, a reforma – ou melhor, certa interpretação cruel da reforma – ao pretender a pura e simples redução do valor do ser humano, não respeitando os tempos de vida humana e não sabendo valorizá-los, é, em si, desumana.

Tal qual os humanoides, retorno à questão inicial: será que somos realmente humanos? Como Valter Hugo Mãe, no livro A Desumanização, nos diz: “O inferno não são os outros (…). Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes. Dura pelo engenho que tiver e perece como um atributo indiferenciado do planeta. Perece como uma coisa qualquer. “3

Philip P. Dick diria: sem o outro, sem presente ou futuro, somos meramente androides. A reforma trabalhista não nos retirou a capacidade de empatia e nossa condição de ser humano. Por isso acredito na interpretação humanizada das normas introduzidas pela reforma revolucionária: lembrando apenas que, na maior parte das vezes, as revoluções geraram grandes tragédias humanas.

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Como epílogo deste pequeno artigo, ou como adendo, seria interessante trazer a história do professor John Nash. Esse matemático americano, reconhecido internacionalmente por suas pesquisas, especialmente pelo desenvolvimento da Teoria dos Jogos, laureado com o prêmio Nobel de Economia, foi diagnosticado com esquizofrenia. John Nash, apesar de todos os seus problemas decorrentes de sua enfermidade, bem retratados no oscarizado Filme Uma mente brilhante, foi mantido pela Universidade de Princeton, produzindo apenas de forma bissexta, porém resultando, com isso, grandes pesquisas e estudos utilizados no mundo inteiro, produzindo até o final de sua vida, aos 86 anos. John Nash, inclusive, desenvolveu estudo contribuindo sobre o valor da diversidade humana. O seu estudo, tanto esse quanto a teoria dos jogos – bem como sua história de vida – poderiam inspirar não somente a Universidade Estácio de Sá, mas todos nós que duvidamos das vantagens, inclusive econômicas, de relações humanas mais… humanas, ou seja, em empatia com os outros da nossa condição.

 

FONTE: www.jota.info